Lei de cotas para deficientes obriga empresas com mais de cem funcionários a reservar de 2% a 5% de suas vagas para o grupo
“No começo, achei que não fosse conseguir, porque não conseguia ler nada. Com o tempo, fui decorando o tipo de pão”, relembra Reginaldo Nagatomo, 32 anos, repositor e deficiente visual. “Sempre tinha uma pessoa comigo, que eles chamam de padrinho. Você nunca fica sozinho quando entra, mesmo que não tenha deficiência. Hoje, só de pegar no pão eu já sei qual é.”
“No caso de um colaborador, o Celso, deu um gelo na barriga contratá-lo para a produção. Ele é cego. Não conhecíamos os limites dele, ele próprio foi determinando”, conta a gestora Samanta Vilalon Barbosa. “Agora estamos colhendo os frutos. Ele é um colaborador produtivo. As pessoas pensam que é utópico, temem ter um funcionário que não é produtivo, que vão sair perdendo. Mas a gente vê que não é assim.”
Os depoimentos acima ilustram o cotidiano de pessoas desbravando territórios ainda pouco explorados no Brasil. São alguns dos pioneiros em um movimento que tenta tornar o ambiente de trabalho mais inclusivo para os 45 milhões de cidadãos brasileiros com algum tipo de deficiência.
Reginaldo, Celso e Samanta trabalham na Padaria Real, em Sorocaba (SP). A empresa tem 800 funcionários, distribuídos entre quatro lojas, uma fábrica e um restaurante.
Famosa na cidade por suas coxinhas, a padaria abraçou, há dois anos, o desafio de se tornar uma empresa inclusiva. E enquanto luta para se adequar à legislação nessa área, seu caso ilustra as dificuldades e oportunidades que a inclusão oferece.
Inclusão
Segundo o Dicionário de Direitos Humanos do Ministério Público da União, inclusão social quer dizer deixar de excluir – seja por raça, orientação sexual, gênero ou qualquer outra razão.
No entanto, isso não significa permitir que o excluído se adapte, por mérito próprio, ao sistema vigente, mas sim exigir que poder público e sociedade ofereçam condições necessárias para acolher as especificidades de todos.
No caso da pessoa com deficiência, isso quer dizer, por exemplo, oferecer rampas, elevadores e banheiros acessíveis para cadeirantes. Ou piso tátil e lupas eletrônicas para pessoas com deficiência visual – recursos que colocam a pessoa com deficiência em pé de igualdade com quem não tem deficiência.
Inclusão também implica mudança de conceitos, de jeito de pensar o mundo. Para brasileiros hoje, entender esse conceito à primeira vista complexo se tornou imperativo: no último 6 de julho, o governo sancionou a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI), que reúne várias outras leis que já existiam sobre o assunto.
Segundo a procuradora regional da República Eugênia Gonzaga, a legislação anterior estava desencontrada e havia incompatibilidades com a Convenção da ONU sobre Pessoas com Deficiência, da qual o Brasil é signatário desde 2008.
“A LBI é boa, até mais avançada do que em muitos países. Ela quase repete a convenção da ONU. E ficou bem mais clara”, disse Gonzaga à BBC Brasil. “Por outro lado, deixou muito sem esclarecer, porque ia ser ainda mais difícil de votar. Esperávamos mais, mas foi o que foi possível fazer no momento.”
Lei de cotas
Grupos que defendem os direitos de pessoas com deficiência no Brasil ficaram desapontados com alguns vetos feitos ao texto original da LBI. Por exemplo, foi vetada uma cláusula que determinava que empresas com a partir de 50 funcionários reservassem ao menos uma vaga para pessoas com deficiência.
Empresas maiores, com a partir de cem funcionários, já são obrigadas, pela lei de cotas para pessoas com deficiência, em vigor desde 1991, a reservar de 2% a 5% de suas vagas a essas pessoas. Pela regra, a Padaria Real deveria estar empregando pelo menos 16 pessoas com deficiência.
Segundo Samanta, trabalham hoje ali 15 pessoas com deficiência. “Já estamos no processo de inclusão e não queremos parar. Nossa média (de contratação) é uma pessoa com deficiência por mês”, diz.
Na esfera jurídica, a procuradora Eugênia Gonzaga explica por que ela e seus colegas defendem que haja uma cota. “No Brasil, temos grupos extremamente excluídos, e só a conscientização não basta. Por isso defendemos cota. Mas ela não pode vir sozinha. É importante, para quem tem deficiência, saber que não está lá para cumprir número”, ressalta. “A pessoa quer oferecer sua capacidade.”
Seguindo essa lógica, multas para não cumpridores só são aplicadas em último caso, quando os fiscais do Ministério do Trabalho, depois de dar tempo e apoio às empresas, concluem que elas não têm mesmo a intenção de cumprir a lei.
Cultura
Para os defensores dos direitos de pessoas com deficiência, no entanto, não basta cumprir a lei. A inclusão requer uma mudança cultural. A empresa de educação inclusiva nos negócios Consolidar Dorina, associada à Fundação Dorina Nowill para Cegos, prepara equipes de empresas para incluir pessoas com deficiência e acompanha o desenvolvimento profissional de candidatos.
Lincoln Tavares, um dos educadores da Consolidar, explica que a ideia é criar empresas que valorizem a diversidade e não enxerguem os trabalhadores com deficiência como uma mera cota. “A maioria das empresas sofre para reter o talento com deficiência. Quer cumprir a cota, mas não tenta qualificar ou desenvolver essa pessoa”, diz.