Por que no Brasil se tributa a produção e não o consumo?

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Por Caio Malpighi, portalcontabilsc.com.br

A última reforma tributária estrutural efetivamente ocorrida no Brasil se deu há mais de 50 anos, com a edição da Lei nº 5.172, aprovada pelo Congresso em 25 de outubro de 1966, que instituiu o até hoje vigente Código Tributário Nacional (CTN).

Referida codificação foi fruto do labor incansável de um dos grandes juristas da história do Brasil, Rubens Gomes de Sousa, que já iniciara a elaboração do anteprojeto do CTN ainda na década de 1950, recusando, inclusive, no decorrer de sua empreitada, uma indicação para ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) [1], em nome de tal projeto.

Muito embora o CTN tenha se inspirado no Código Tributário Alemão (Reichsabgabenordnung) — uma codificação essencialista, voltada a buscar a realidade econômica em detrimento do formalismo —, a influência positivista do pensamento jurídico brasileiro dos séculos 19 e 20 fez com o que o design do até então reformado sistema tributário nacional se alicerçasse mais sobre formas jurídicas e categorias de Direito Privado do que na realidade econômica que se pretendia atingir com a tributação [2].

A influência formalista que predominava na cultura jurídica brasileira a partir da década de 1970 — a exemplo da escola formada por Geraldo Ataliba, no campo do Direito Tributário —, foi de extrema importância diante do contexto político da época, em meio ao regime militar, garantindo o debate jurídico da perspectiva formal e da hierarquia das normas [3]. Apesar disso, o devir social e a usura do tempo demonstraram que não basta apenas prezar pelas formas jurídicas e pela estrutura lógico-normativa do Direito, mas deve-se preocupar também com o seu alinhamento com a realidade social visada pela norma — no caso do Direito Tributário, com a realidade econômica.

Mais centrado em uma visão positivista, o Direito Tributário nacional erigido naquela época está, portanto, fundado na preocupação formalista do legislador em atingir os fatos econômicos por meio de conceitos rígidos do Direito Privado, como se observa, por exemplo, na redação do artigo 110 do CTN. Também se verifica uma distinção, para fins de Direito, entre a incidência tributária que ocorre no plano jurídico, da que ocorre no plano fático, à guisa da dicotomia estabelecida pelo artigo 166 do CTN, que confere tratamento distinto entre o que se chama de “contribuinte de fato” e o “contribuinte de direito”.

Tal mentalidade jurídica fez com que toda a técnica legislativa empregada dali para frente se desse de maneira descompassada com a realidade econômica tributada, principalmente no que diz respeito à tributação do consumo (isto é, a tributação da renda consumida[4]) — que, no Brasil, se verifica, ao menos em tese, através da cobrança do ISS, que incide sobre a prestação de serviços; do ICMS, que incide sobre a circulação de mercadorias; do IPI, que incide sobre a industrialização de bens, e do PIS/Cofins, que incidem sobre o faturamento ou sobre a receita auferida pelas empresas em decorrência de suas atividades empresariais.

Na pretensão de tributar o consumo, os mencionados tributos têm em comum o fato de incidirem de forma indireta — ou seja, são cobrados do industrial, importador, comerciante ou prestador de serviços e repassados indiretamente ao adquirente ou tomador [5], embutidos no valor total do preço cobrado no negócio [6]. A chave para que o consumidor final pague apenas o valor do tributo incidente na última etapa da cadeia de produção estaria na técnica da não-cumulatividade, que garantiria aos agentes econômicos presentes do meio da cadeia o creditamento do tributo incidente na etapa anterior.

Para Rubens Gomes de Sousa, autor do anteprojeto do CTN, a técnica necessária para a captação da renda consumida consistiria na tributação indireta, o que, para ele, demandaria o desmembramento da incidência jurídico-tributária entre a incidência legal (prevista pela norma jurídica) e a incidência econômica (ocorrida no mundo fenomênico dos fatos) [7]. Em suma, segundo tal lógica postulada pelo referido jurista, a tributação indireta necessária à captação da renda consumida implicaria a existência de dois contribuintes, um de direito, a quem a lei incumbiu a responsabilidade de recolher o tributo; e um de fato, que arca economicamente com o encargo financeiro da incidência tributária no ato do consumo — daí a ratio legis da mencionada dicotomia estabelecida pelo artigo 166 do CTN.

Verifica-se, no entanto, que tais espécies tributárias falham em incidir sobre o consumo. Em tese, como dito acima, a sua finalidade seria mesmo captar a riqueza gerada pelas pessoas com o consumo de sua renda na aquisição de bens e serviços. Ocorre que não é o fenômeno econômico “consumo” que acaba sendo alcançado no Brasil [8]; mas sim a produção e a comercialização de bens ou prestação de serviços, exatamente em razão da inadequação da técnica empregada pelo legislador, que se vale formas jurídicas desconexas de tal fenômeno econômico. Isso porque, para a incidência tributária sobre fatos econômicos, adotaram-se figuras e modelos jurídicos do Direito Privado, de modo que as relações jurídico-tributárias subjacentes se firmaram de maneira desalinhada.

Por exemplo, de acordo com o nosso sistema tributário atualmente vigente, o contribuinte do ICMS é o comerciante, e não o adquirente da mercadoria, de quem vem, de fato, a riqueza desembolsada, a ser captada naquele momento da tributação. O mesmo ocorre no ISS: quem é o contribuinte desse tributo, pela lei vigente, não é o tomador dos serviços, mas sim o prestador. Tudo isso porque os fatos geradores de tais incidências tributárias estão previstas na norma jurídica de forma inadequada: as hipóteses de incidência tipificadas na norma se referem ao fornecimento de bens ou à prestação serviços e não à aquisição, que é o ato pelo qual se manifesta o consumo da renda. Por consequência, o contribuinte de tais tributos acabam sendo os fornecedores e prestadores, e não os adquirentes — tampouco os consumidores.

Tal afastamento da realidade econômica — isto é, da renda consumida a ser captada — faz com que os tributos indiretos se equiparem aos demais custos de produção repassados ao final no preço. Outro reflexo desta distorção do nosso sistema é que as alíquotas instituídas pela Lei não refletem a carga tributária efetivamente arcada pelo consumidor final. Como se não bastasse, também temos uma técnica ineficiente de não-cumulatividade mediante os diversos óbices ao aproveitamento de crédito no decorrer no processo produtivo, que acarreta o “efeito cascata”; a tributação ocorre na origem, incidindo no local da produção/prestação e não no destino, local de consumo, instigando a guerra fiscal entre os entes federados e, ainda, utilizamos uma metodologia irracional de cálculo dos tributos, fazendo incidir tributo sobre tributo, tornando a apuração mais complexa e obscura.

Olhando o conjunto todo da ópera, fica claro que tal sistema formatado com base em uma realidade econômica e em uma mentalidade jurídica extremamente formalista do século passado merece ser reformado e renovado, principalmente para que a tributação sobre o consumo se dê de forma eficiente, e sem tantas distorções. Assim, elimina-se uma grande bola de ferro que está presa no pé de da economia nacional, e que há tanto tempo impede seu potencial crescimento.

Do ponto de vista dos verdadeiros contribuintes — neles inclusas todas as famílias brasileiras que consomem bens e serviços [9] —, tal reforma também se faz necessária, a fim de que a tributação indireta de sua renda consumida se dê de forma clara, de modo que ao consumir o cidadão brasileiro consiga saber exatamente quanto do montante gasto refere-se ao preço do serviço/mercadoria e quanto refere-se à sua obrigação de arcar com os tributos incidentes indiretamente naquele consumo. Assim, afasta-se o ilusionismo fiscal e financeiro [10], e passa-se a estimular a cidadania fiscal: os cidadãos saberão o quanto estão pagando — ao consumir — e poderão exigir de seus representantes a contrapartida proporcional na administração da coisa pública.

A oportunidade para que essas soluções possam se concretizar está atualmente em jogo no Senado Federal, onde tramita a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 110 de 2019, pela qual se pretende unificar as principais espécies de tributos indiretos existentes no Brasil em um único Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), nos moldes mais modernos do Imposto Sobre Valor Agregado (IVA), como por exemplo, aquele vigente no Canadá [11].

O principal ponto positivo dessa proposta é que, além de visar uma simplificação e renovação na tributação do consumo no Brasil, busca principalmente colocá-la a pari passu com a realidade econômica, retirando a figura do contribuinte da pessoa do produtor/prestador e colocando-a mais próxima do consumidor, sobre a pessoa do adquirente; isso, através de uma técnica de não-cumulatividade plena no decorrer da cadeia de produção, bem como com base na cobrança do imposto no destino da operação, fatores esses que farão com que a incidência tributária se desloque para onde realmente sai a riqueza a ser tributada: da renda gasta pelo consumidor final, na aquisição de bens ou na contratação de serviços.

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